segunda-feira, setembro 24, 2012

VISITA Á CIDADE VELHA DA RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO


Na foto a Rua Banana, preservada como era há quinhentos anos atrás, com as suas paredes de pedra e coberturas de colmo, com a rua calcetada. Hoje, as suas casas servem para alugar aos turistas.


A Cidade Velha, cujo primeiro nome foi Ribeira Grande, pelo local onde foi construida, é a mais antiga cidade construida pelos europeus, no caso os portugueses em África e foi classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 26 de Junho de 2009.
No dia 6 de Agosto, fui visitá-la com o João Furtado, a convite e na companhia do Prof. Dr. Daniel Medina, professor universitário, linguista, conferencista, cronista e jornalista, que emprestou a sua ilustre presença ao lançamento do nosso livro Olhares de Saudade, que fez o favor de apresentar e escrever o prólogo e que nos serviu de cicerone nesta visita guiada. Acompanhavam-nos também duas das suas alunas.
A cidade dista cerca de 15 quilómetros da Praia, por estradas de montanha tortuosas e empedradas, vestígios da presença dos portugueses, ainda mais difíceis de transitar, porque em certos trechos está só metade da via utilizável, devido a obras de construção de um resort turístico. Mas antes de chegarmos á cidade, fomos visitar o Hotel Por do Sol, construido mesmo em cima da falésia frente ao mar, com uma vista deslumbrante, e de onde se pode assistir ao por do sol, pintado com as mil cores da mãe natureza.
Continuámos para a cidade e ao aproximarmo-nos chamou-nos logo á atenção na montanha á direita, o imponente Forte de São Filipe, construido no alto da Achada de São Filipe, 120 metros acima do nível do mar. Quando a cidade foi construída, pensou-se que devido ao seu isolamento estaria naturalmente defendida. Mas com a perda da independência portuguesa devido á morte do Rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir em Ceuta, os piratas sentiram-se com coragem de atacar a cidade. Assim aconteceu em 1578 e 1585 em que o pirata inglês Francis Drake tomou de assalto a cidade. Foi então decidido construir um conjunto de fortes defensivos pelo rei D. Filipe I de Portugal (II de Espanha), no conjunto de sete, dos quais o maior e mais importante era o que ainda se mantêm. No entanto em 1712, a cidade foi de novo saqueada e incendiada, por corsários franceses comandados pelo pirata francês Jacques Cassard, tendo sido arrasado o forte. Na segunda metade do século XVIII foi reconstruido e nos nossos dias foram feitas obras de conservação e restauro em 1968 e 1970 e mais recentemente em 1999. O Ministério da Cultura de Cabo Verde sob coordenação do arquitecto português Siza Vieira e com recursos e cooperação da Agencia Espanhola de Cooperação Internacional, preparou assim o forte para a candidatura a Património Mundial, da cidade.
Descendo até ás ruas tortuosas e empedradas com pedra preta da costa, a mesma de que a maioria das casas e muros, são construidas, demos uma volta pelas ruas estreiras, mas antes parámos para cumprimentar uma senhora idosa, D. Rosalinda Barreto, que é assim como uma enciclopédia viva que na sua memória tem toda a história da cidade. Contou-nos que a sua família tem em sua posse, documentos antigos que lhe permitem conhecer muita da história antiga. Oferecemos-lhe o nosso livro, para estar lado a lado, com as memórias do passado.
Passámos em seguida na Rua Banana, a rua mais antiga da cidade, com as suas casas de pedra e coberturas de colmo, que não se podem alterar devido ao facto de a cidade ser património mundial, e são alugadas aos turistas que querem passar uns dias naqueles locais carregados de história.
Mas a cidade tem outros monumentos, alguns conservados, outros arruinados, como a Sé Catedral que já só restam ruínas. Tem também a Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Estacionado o potente jipe na praça, junto ao pelourinho que foi erguido em 1520 e servia para amarrar os escravos para serem castigados, bem como os criminosos, fomos então em direção ao local de eleição do professor, e ponto de chegada do delicioso passeio.
Era um pequeno restaurante ou café, com uma esplanada, virado para o mar mesmo ali em frente e onde se degustariam moreias fritas, que na verdade estavam deliciosas de tão macias e fresquinhas.
Enquanto esperávamos pelas aclamadas moreias,e a noite ia caindo, sem iluminação a não ser a noite, fui ouvindo as histórias que eram contadas, da chegada dos portugueses e do seu desembarque naquele local, bem como dos ataques dos piratas enquanto o cheiro forte da maresia me acariciava o nariz e a pele, e não pude deixar de escutar misturado ao rebentar das ondas, o atroar de vozes de antanho, em brados de dor e de exultação pelas derrotas e conquistas.

Arlete Piedade

CHORO POR TI, PORTUGAL !

Choro por ti meu país nascido á beira mar
Choro por teus velhos oprimidos e angustiados
choro por tuas crianças sem futuro e sem esperança
choro por tuas mães e seus filhos sem juventude
choro por teus pais sem saber como educar seus filhos
choro por teus jovens que têm de partir de novo
choro por teus campos ressequidos e cheios de ervas
choro por tuas florestas queimadas e destruidas
choro por teus bombeiros heróis mortos...
choro...choro...todos os dias choro...
choro por teus governantes á deriva
choro por teu passado de lutas gloriosas
choro por teus navegantes do passado
choro por teus heróis que abriram caminhos
choro por teu povo de trabalhadores no estrangeiro
choro...choro...meus país amado...
ao ver teu povo amargurado,
ao ver teu solo abandonado
ao ver teu mar por outros explorado
teu mar que já foi teu chão...
que já te deu novos povos...
novos caminhos, novas terras...
riquezas e irmãos...
Até quando vamos chorar meu povo?
Chegou a hora de limpar o rosto...
erguer os olhos, cerrar os punhos...
soltar a voz, lançar o brado...
e encontrar novos caminhos!

Arlete Piedade

Conto " O Caminho"





Cansada de procurar o caminho de acesso ao coração da cidadela, onde se situaria a casa secreta do governador da praça forte, a mulher encostou-se por momentos ás pedras que compunham o alto muro que rodeava a cidade sitiada por um inimigo que não arredava pé. Não se compreendia a razão daquela presença teimosa, a não ser pela própria teimosia em si, pois a cidade e o seu governador aparentemente não possuiam riquezas que justificassem tal assédio cerrado.
A própria mulher que se encostava de olhos fechados ás velhas pedras gastas pelo tempo, já não se lembrava ao certo da razão porque procurava a casa do governador. Só sabia que tinha que o encontrar, para o avisar de um perigo iminente, estranho e antigo. Ele tinha que saber quem estava por trás daquele cerco absurdo á pequena cidade dentro do castelo, erguido no alto da mais inacessível penedia do cume mais inexpugnável da montanha das Três Estrelas.
Já não se recordava há quantos anos vagueava pelas velhas ruelas estreitas, dormindo nas caves escuras de casas há muito apenas habitadas por espectros ululantes, bebendo água das poças de chuva ou lambendo o orvalho das velhas pedras, quando não chovia. Ás vezes comia uma fruta das árvores das velhas praças abandonadas, ou arrancava uma raiz nos jardins outrora belos e cheirosos que ainda mantinham algumas plantas selvagens onde ás vezes irrompiam flores vermelhas. E quando acordava, continuava sempre á procura. A casa do governador? - Perguntava aos raros transeuntes e até aos cães vadios que a olhavam abanando o rabo pelado e magro.
Mas naquele dia um acontecimento estranho abalou a rotina da cidade sitiada. Ela sentiu o tremor no seu corpo encostado ao muro. As velhas pedras tremiam, primeiro com um ligeiro tremor, em seguida com mais fragor, e um ruído estranho tomou conta do ar. Não sabia dizer se era um rumor subterrâneo, ou se vinha pelo ar, mas aumentava e aproximava-se rápidamente. A mulher em pânico, desatou a correr pela ruela deserta perseguida pelo ruído...Uhmmm....uhnmmm....uhmmmmm....
Então sem noção do que fazia, para se distanciar do ruído, entrou por uma grande brecha aberta na muralha e que parecia seguir por uma passagem calcetada com pedras bem talhadas. Não devia ser uma brecha aberta por aquele estranho rumor que serpenteava no interior da montanha. Na verdade parecia um corredor aberto pela mão de velhos mestres pedreiros e calceteiros, que se internava cada vez mais no coração da montanha escura, deixando o tremor de terra para trás. Sim ela já pensava que devia ser um tremor de terra. Uma vez o seu velho pai há muito desaparecido do mundo dos vivos, tinha passado por um acontecimento semelhante, lembrava-se difusamente de ele lhe contar uma noite da sua infância junto á lareira.
Agora muito ao longe no fim do longo corredor escuro, notava-se uma leve claridade, ou talvez uma escuridão menos densa. Um sopro de ar frio tocou-lhe o rosto com dedos gelados. No chão sentiu que um fio de água rumorejava num pequeno rego junto á parede. Parou e baixou-se para beber. Com a mão sentiu a água gelada nos dedos e levou-os molhados aos lábios e á língua que humedeceu. Não sabia se a água era potável, por isso não se atreveu a beber mais. Parou por momentos, mas logo prosseguiu desejosa de chegar ao fim daquele caminho no interior da montanha. Seria possível que fosse ter enfim á casa do governador e que o pudesse avisar daquele terrível perigo que sobre ele pendia?
A mulher continuou o seu caminho mais revigorada pela água e o ar fresco e pela leve claridade que aumentava a cada passo nas velhas pedras gastas pelo tempo inexorável. Continuou e continuou e a cada passada ia ficando com a certeza que um ruído diferente do tremor de terra, se ia escutando, primeiro quase imperceptível, em seguida um rumorejar ou um restolhar que parecia vir de todos os lados, ora do chão, ora do ar. Parou para se orientar e com as mãos tateou o ar á sua volta, como para apalpar aquele estranho ruido. Era quase com se as pedras respirassem e arfassem como um organismo vivo que tenta sobreviver aos estertores da morte. Um arrepio percorreu-lhe o corpo magro, mas não era de frio. Era medo, terror ancestral de um velho mal que habitava naqueles corredores cheios do mofo do tempo parado.
Tateando as velhas paredes, avançou aos tropeções, os pés enrolando-se nos farrapos que restavam das saias compridas e escuras. O respirar das pedras era bastante audível agora e chegava-lhe aos ouvidos como um anhn...anhn...abafado. De repente os pês sentiram faltar o chão á sua frente e parou repentinamente, mas estava tão fraca e trôpega que se abateu no chão como um farrapo velho sacudido por uma corrente de ar forte. Ia para rastejar, mas as mãos só encontravam o vazio á sua frente. Descansou a velha fronte exausta em cima das mãos cruzadas na pedra, para se proteger da frialdade do chão e ficou assim de olhos fechados.
E assim a encontrou o batedor do governador, que á frente do grupo maltrapilho que em tempos fora um séquito formado pelos nobres, clero e oficiais do exército da cidade, transportava uma tocha prestes a apagar-se com que tentava iluminar o caminho para escaparem para o interior da alcaçova fugindo do inimigo que tinha conseguido entrar na cidade, através de uma brecha na muralha aberta pelo tremor de terra.
Tropeçou no velho corpo estendido e quase frio, mas sentiu um movimento a seus pés e baixando a tocha viu que era um corpo humano, talvez de uma mulher que ainda respirava quase inaudivelmente.
Hesitando entre socorrer aquele pobre vulto, ou proteger aqueles que confiavam em si para encontrar um caminho seguro, deteve-se por momentos. A mulher sentindo que outro ser humano estava ali e podia ser uma fonte para o seu problema, soergueu a cabeça desgrenhada a custo e articulou uma palavra com sentido interrogativo. Baixando-se para tentar entender o que dizia a mulher, e de alguma maneira sentindo que tinha a atenção de alguém, o pobre ser voltou a articular e desta vez foi entendida: O go ver na dor??
Admirado e espantado pela pergunta e pela forma como foi articulada a palavra, o batedor respondeu: - Vem aí atrás com o seu séquito.
Dentes podres numa boca ressequida mostraram-se por momentos, no que devia tentar ser um sorriso, mas resultou num esgar horrível. A mulher tentou levantar-se segurando-se ás botas do batedor. Ele sem pensar porque o fazia, ajudou-a, estendendo uma mão, onde ela se agarrou sofregamente. A mulher ficou encostada á parede cambaleante, ainda agarrada á mão do batedor. O séquito aproximava-se, com o governador no meio do grupo que o cercava tentando protegê-lo de algum inimigo talvez só imaginário.
Então deu com os olhos no vulto encostado á parede e que se confundia com as velhas pedras e perguntou ao batedor: Quem é e que quer de nós essa ruína humana?
Não sei senhor, mas ela estava moribunda estendida no chão e só perguntou pelo governador. Então ajudei-a a levantar-se e aqui ficou á espera da sua passagem. - Respondeu o batedor perplexo.
Que queres de mim, velha mulher? - Interpelou-a agora diretamente o governador da cidadela arruinada.
Não sabes quem sou? Já não reconheces a tua velha mãe que prometeste ao teu pai no seu leito de morte, nunca abandonar? - Respondeu a velha soletrando as palavras a custo.
Dá-lhe um pouco de água! - Ordenou o governador ao batedor que continuava a suster o corpo da mulher de se abater no chão de novo.
O Batedor chegou á boca da pobre moribunda, o seu cantil e tentou dar-lhe de beber. Ela apenas sorveu um gole e rejeitou beber mais, afastando o cantil.
O governador olhava-a sem saber o que pensar. Não parecia a sua mãe, que há muito tempo lhe tinham dito que tinha morrido num dos primeiros ataques do inimigo, colocando-se no caminho de uma seta que lhe era destinada, para o proteger. Mas julgava-te já morta, pois assim me disseram. - Respondeu á velha em tom sumido.
Não morri da seta. Uma jovem mulher levou-me para a sua casa e cuidou de mim. Mas o inimigo continua atrás de ti, para te matar.- Respondeu a mãe do governador ao filho.
É só para me matarem que cercaram a cidade? - Resumiu o governador.
Sim, porque tu és o filho de Abdul o mouro e de Nazaré a cristã. Ele traiu o seu povo para casar comigo e tu és a prova viva da traição. - Respondeu a velha Nazaré em voz quase inaudível.
- Mas o inimigo conseguiu entrar na cidadela. Vem a perseguir-nos, aí atrás! Respondeu Afonso, o governador.
Continua em frente meu filho. Quando chegares á alcaçova, atrás da chaminé há a entrada para um tunel secreto que te levará e ao teu séquito, ao vale. De lá poderão conseguir ajuda na cidade de Nazaré. Diz ao governador que és o meu filho! Deixa-me aqui só com uma tocha que os irei deter.
Afonso hesitou, entre o seu dever de filho que queria ajudar a mulher que o tinha dado ao mundo, e o seu dever de governador da cidade de Três Estrelas que queria salvar a cidade e os seus habitantes que restavam. Tomou a terrível decisão e ordenou ao batedor: - Dá-lhe uma tocha e o teu cantil e continuemos em frente!
Assim foi feito. Com um último olhar, Afonso aceitou o ultimo sacrifício de sua mãe que ficou encostada á parede segurando a tocha, com o cantil a seus pés. Continuaram o seu caminho e a alcaçova já estava á vista, quando lhe chegou o estrondo abafado de uma explosão lá atrás no caminho. Ondas de fumo e calor os alcançaram mas sem grande força já. Correndo entraram na velha casa dos anteriores governadores e dirigiram-se para a chaminé. Afonso localizou a entrada do caminho secreto, afastando a pedra que cobria a entrada e entraram em fila, voltando a colocar a pedra que servia de porta no lugar. Era estreito e descia sempre com toscos e gastos degraus escavados na pedra da montanha. Ao fim de um tempo que parecia não ter fim, viram ao longe um ponto de luz que foi aumentando até se transformar numa saída que desembocava na encosta acima da margem do rio. Exaustos mas aliviados, foram refrescar-se nas frescas águas e seguiram a estrada de Nazaré. Em breve iriam conseguir ajuda e voltar para os trabalhos da reconquista.
Mas D. Afonso continuava pensativo com o destino da sua velha mãe e a origem da explosão no interior da montanha e perguntou ao batedor: - Que tinhas no cantil que deste á Nazaré? Pois o teu cantil vazio acabaste de o encher de água no rio.
Diogo o batedor, que tinha percebido a intenção da velha mulher de se sacrificar pelos companheiros, atacando o inimigo, respondeu calmo: - Era pólvora, meu Senhor! Com água ela não ia conseguir!

Arlete Piedade