Ruinas da
cidade de Machu-Pichu
(imagem retirada da Internet)
Estas recordações referem-se ao tempo em
que eu tinha entre quatro e seis anos. Era curiosa e viva, interessada pelas
letras e pelos desenhos, mas ainda não sabia ler.
Vivia numa aldeia pequena e pobre, e
passava muito tempo naquele quarto simples, porque estava doente e era Inverno.
Fazia frio lá fora e chovia, e a minha mãe não me deixava sair, para não
piorar.
Decorria então o ano de 1960, não havia
televisão, e o rádio só chegaria a casa de meus pais na minha adolescência. Não
tinha muitas coisas para me despertar o interesse pelas letras, apenas um
jornal regional que o meu pai assinava, e as caixas dos medicamentos que tomava
para as doenças de criança.
Como ainda não sabia ler, só via os
desenhos das letras e, curiosa, perguntava à minha mãe que letra era aquela e
aquela e a outra e a mãe ia respondendo:
- É um A, um E – e por aí fora.
Até que um dia o meu pai chegou do
trabalho com um embrulho comprido e estreito, desembrulhou-o e pendurou-o na
parede do meu quarto. Fascinada, passei a admirar por longas horas, aquele objeto
misterioso, brilhante, cheio de números e letras. Tinha várias folhas, que o
meu pai ia mostrando e em cada folha, imagens misteriosas de altas montanhas e
casas muito estranhas, feitas de pedras e sem telhados.
Entre as casas, ruas que subiam e subiam
pelas montanhas, também feitas de pedras e torres, muitas torres com degraus
enormes. Mas não havia ninguém naquelas casas e naquelas ruas, como seria viver
naquele local misterioso?
O tempo passou e fui melhorando enquanto
via o calendário sempre pendurado na parede do quarto e ia fazendo perguntas
que os meus pais respondiam como sabiam. A minha mãe dizia-me o nome dos
números e das letras, o meu pai contava-me que aquelas imagens eram de uma antiga
cidade em ruínas, onde há milhares de anos, tinham vivido pessoas que
pertenciam a um povo chamado Os Incas.
O que também me chamava a atenção era o
nome do calendário, porque aquela palavra que tinha duas partes, separadas por
um grande pneu, a minha mãe não sabia ler.
O meu pai, que era motorista de camião,
explicou-me que aquelas palavras eram a marca de pneus, e que se liam Gudiare, mas o que me fascinava era a
história da cidade antiga, que aprendi que se chamava Machu-Pichu.
O calendário permaneceu pendurado
naquela parede alguns anos, até eu ir para a escola. Depois de aprender as
primeiras letras, consegui ler sozinha o nome da cidade e a marca dos pneus.
Agora sabia que era Good-Year e que não era português. Mas só alguns anos
depois soube que o significado daquelas palavras era «Bom Ano».
E na verdade foi um bom ano, curei-me da
doença, passei a ir à escola e os sonhos tinham começado a germinar na minha
mente. Na escola havia um armário no átrio, que tinha dentro das portas
envidraçadas, alguns tesouros que eu cobiçava. Eram livros de histórias, os
primeiros que via e ambicionava poder ler. Logo que a professora autorizou, li
o primeiro. Chamava-se «O Ladrão de Bagdad». Tinha desenhos e histórias
admiráveis de ladrões, príncipes e princesas. E tinha locais misteriosos e
longínquos também, onde se passava a história.
Assim passei a sonhar em visitar aqueles
locais quando fosse grande e ajudar a decifrar os mistérios de antigas
civilizações. Escrevia redações onde expressava os meus desejos e que os
professores incentivavam, aconselhando os meus pais a prosseguirem os meus
estudos.
Nos anos da adolescência e juventude,
passei a estudar História do mundo e das antigas civilizações e os sonhos
voltaram em força. Como admirava os arqueólogos, os historiadores, os
exploradores de selvas virgens, os descobridores de mistérios! Ah, ser
arqueóloga, que desejo! Mas nem fazia ideia como tornar possível esse sonho!
Quando descobri como frequentar as
bibliotecas públicas, passei a ser uma leitora compulsiva! Lia coleções
inteiras de livros juvenis, depois de aventuras, depois de mistérios, dramas,
romances, quanto mais misteriosos mais me inflamavam a imaginação ardente!
Os meus pais desejavam que fosse
professora, mas acabei por estudar num curso comercial, para arranjar um bom
emprego! – diziam os meus pais.
Consegui o tal emprego, e com os meus
primeiros ordenados passei a comprar livros de mistérios, muitos livros que
devorava e colecionava. Namorei, casei, tive filhos, passei a viver uma vida de
classe média nos subúrbios de uma grande cidade. Quando saía do emprego passava
na livraria em frente, à procura do último livro de ficção científica
publicado! Lia, lia muito! Sonhava, sonhava muito!
Até que um dia...descobri, cansada de
ler... os olhos estavam fracos! Custava-me focar as letras...passei a escrever!
Escrever os sonhos dos outros e alguns dos meus também!
Já era agora uma mulher adulta e madura,
os filhos estavam crescidos, os sonhos armazenados, ainda à espera de uma última
oportunidade, e abri a minha caixa de e-mails.
Uma pessoa amiga tinha-me enviado uma
música dizendo ser única e rara! Ouvi com toda a atenção! Um descendente dos
Incas tocava, numa flauta, uma melodia misteriosa e comovente, acompanhado de
uma orquestra, ele era o solista!
Enquanto ouvia aquela música, na minha
alma renasceu o sonho! Voltei à infância! Revi as tardes e os dias que passava
olhando pela janela do meu quarto, as andorinhas nos ninhos na velha casa em
frente, a chuva a cair, o gelo acumulado na janela, e aquele calendário!
Machu-Pichu, os Incas, a cidade
misteriosa! Os desejos de ser arqueóloga, exploradora, viajante! Sonhos de
criança, sonhos pueris! Ou não? Mas os anos passaram, tantos já! Será que ainda
é possível o resgate de alguma parte dos velhos sonhos?
Arlete Piedade Louro
Publicado no livro " ERA NO TEMPO DE...Crónicas de Outras Épocas"
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